A Veemência do feminino em Thelema
Embora possuam origens e nascimentos distintos, Thelema e Gnosticismo celebram uma relação longeva e duradoura, onde um fornece a doutrina e o outro a forma da sua celebração. Porém, enquanto o gnosticismo per se tenha buscado inspiração tão somente no cristianismo, Thelema foi além. Como escreve Sib. Z. Arrhenothelus na introdução da “Triune Mass for Thelemites”:
“Nós literalmente, não figurativamente, invocamos Pan. Chamamos pelo nome de divindades egípcias pagãs. Dizer que elas não significam a mesma coisa para nós que fizeram com os egípcios é dizer que não somos reconstrucionistas egípcios, o que nunca afirmamos ser. Também não somos incompatíveis com o grego, ou egípcio, qualquer outra reconstrução.Se acreditamos em alguns princípios unificadores, e pessoalmente, assim como muitos pagãos, wiccanos e outros hoje, Thelema deve ser um núcleo vibrante amarrando muitas crenças alternativas, apresentando um conjunto compreensível de princípios fundamentais”.
Embora os textos de Crowley nos mostrem uma forte identificação com divindades egípcias e gregas, sabemos que estas não são uma regra de exclusividade e sim uma demonstração das influências da “egiptomania esotérica” da Golden Dawn com o helenismo da formação clássica britânica. Sim, é bem verdade que vez ou outra Crowley apresenta um termo ou conceito de outra linha de pensamento, mas sem muito aprofundamento ou desenvolvimento a respeito.
Uma linha de pensamento religioso europeu que guarda um lugar de destaque em nossa memória afetiva do dia-a-dia é a nórdica e escandinava, seja através da imagem romantizada dos poderosos e valorosos Vikings ou de bravos super heróis da Marvel. Porém para aqueles que buscam sair do lugar comum e explorar mais a fundo esse brilhante universo, há um riquíssimo tesouro espiritual que fornece um prato cheio para nós, Thelemitas.
Nesse artigo vamos explorar um pouco sobre o vibrante mundo da espiritualidade nórdica e apresentar algumas pontes entre esta e Thelema. Não temos aqui a intenção de sermos reducionistas ou de impor o pensamento de um sobre o outro, mas tão somente, buscamos apresentar possíveis pontos de partida para aqueles que desejarem adentrar mais a fundo nesse estudo.
Antes de seguirmos, uma pequena explicação sobre nórdicos e escandinavos. Originalmente o termo escandinávia servia para designar a região compreendida hoje pelos países Dinamarca, Noruega e Suécia. Porém, a proximidade cultural destes com as Ilhas Faroe, da Finlândia e da Islândia, fez com que todos estes passassem a ser designados como Norden ou países Nórdicos. Nesta exposição de tema, por não nos determos a conceitos exclusivamente dos países da Escandinávia, vamos optar por utilizar o termo Nórdico.
O processo de colonização humana dos países nórdicos é antigo, remontando da Idade da Pedra. Durante séculos povos sob diferentes nomes habitaram e se desenvolveram na região, até a formação de uma proto-identidade no início da era comum, tendo seu ápice entre os séculos VIII ao século XI na chamada Era Viking, onde esses povos, unidos sob uma identidade comum, avançaram sobre outras regiões européias.
Um parênteses importante para ser levado em consideração: foi devido às incursões dos Vikings que os monarcas europeus se atentaram para a necessidade de aprimorar a proteção de suas cidades e passaram então a organizar as guildas de pedreiros responsáveis por esta defesa. Por essas informações serem estratégicas e confidenciais, havia todo um rito próprio para que esse conhecimento fosse perpetuado, mas não fosse tornado público de modo a evitar que os seus inimigos soubessem sobre brechas e falhas presentes nas defesas. Essa organização, que começou com o Rei Athelstan, deu origem a um determinado grupo de pedreiros que continuam por aí até hoje, mas isso é assunto para outro momento.
Voltando à formação da identidade Nórdica, embora não houvesse predomínio de um grupo ou povo sobre outro, havia entre eles o sentimento de identidade em comum e consequentemente a criação de ritos e símbolos cívicos, e principalmente religiosos. Afinal, como bem colocou a filósofa Marilena Chauí, a religião é a manifestação do Sagrado que se mostra por meio de algum símbolo, que traduz uma força superior e que serve de alento às situações cotidianas.
Quando exploramos a religiosidade nórdica encontramos os Æsir, deuses guerreiros que residem em Asgard e os Vanir, deidades mais ligadas à natureza e à fertilidade. Enquanto em outras cosmovisões a ideia de dois povos divinos distintos normalmente é pautada em conflitos, os Æsir e os Vanir possuem uma visão mais “madura” de sociedade, alternando entre períodos de conflitos, mas também, períodos de união por um objetivo em comum.
É interessante observar que tal como os antigos gnósticos tiveram os seus escritos e doutrina conservados pelos seus detratores, os antigos pagãos nórdicos tiveram muito de sua cultura conservada pelos primeiros sacerdotes cristãos. Isso porque um dos efeitos das incursões Vikings foi o de promover o intercâmbio cultural entre os nórdicos e os demais povos europeus. Neste contexto, a aceitação do cristianismo serviu como um caminho observado pelos reis e governantes nórdicos para reforçar o seu poder político em suas comunidades (BRAGANÇA e QUINTANA).
Dentre as divindades presentes no panteão nórdico, encontramos a Deusa Freyja (ou Freia, ou Frøya, dentre outros nomes) em um papel singular. De origem Vanir, ela se une e protagoniza diversos episódios entre as divindades Æsir. A autora Katie Gerrard apresenta em seu livro uma excelente explanação a respeito de Freyja:
Freyja é uma deusa Vanir, famosa por sua beleza e sexualidade. Ela é a deusa do seidr¹ e da bruxaria, e dizem que ensinou o seidr aos deuses Aesir. Ela também foi considerada uma sacerdotisa e, ligada às Valquírias, por ter tido a primeira escolha dos mortos em batalha que então passavam a viver em seu salão Folkvang / Sessrumnir.
Os mitos em que Freyja aparece mostram-na como uma deusa forte e independente.
Ela dorme com quatro anões para ganhar o colar Brisingamen (mostrando seu amor pelo ouro). Em outra história, ela se recusa a ser usada como isca e desfilar na frente de um gigante, num episódio em que o deus Thor tem que se vestir como ela.
Na história de Ottar, também vemos Freyja assumindo um papel iniciático.
Um dos nomes de Freyja, Deusa Nórdica com inúmeras características, era Vanadís, Senhora das Dísir. O próprio nome Freyja significa Senhora e Dísir são espíritos femininos familiares com diversas funções. Entre as Dísir haviam as Valkírias, responsáveis por escolher os guerreiros no pós guerra e levar metade para Fólkvangr de Freyja e a outra metade para o Valhalla de Odin. No festival Dísablót, que ocorria durante o inverno, era oferecido um blót (sacrifício) às Dísir em agradecimento às colheitas vindouras na certeza de que seriam bem agraciados pelas senhoras de örlog (destino pessoal). Freyja ainda é considerada a principal Deusa entre os Vanir, deuses da natureza e fertilidade. Uma de suas runas é Fehu ou Fé, runa que representa o gado, sinônimo de prosperidade.
Outra deusa que se encontra diretamente associada com Freyja é a deusa Frigga. Ela personifica o aspecto da grande mãe e é aquela que se torna a consorte de Odin. Como cita Karlsdottir:
“Frigga também é invocada, junto com Freyja, no parto. No Oddrúnargrátr , a filha do rei Borgny invoca as duas deusas juntas depois que ela finalmente deu à luz gêmeos com a ajuda da magia de Oddrun (…) Frigg, assim como Odin, possui poderes mágicos, notavelmente a segunda visão. Diz-se que ela conhece o destino de todas as pessoas, embora nunca diga o que sabe. Talvez ela não ache aconselhável contar aos outros seus destinos antes de vivê-los.”
Dessa forma encontramos uma trindade bastante interessante no panteão nórdico:
Frejya, como o grande arquétipo feminino em sua totalidade, da qual descende Frigga, a grande mãe, senhora do nascimento, e as Valquírias, guardiãs da morte honrada em batalha. Vida e Morte sob os auspícios da Grande Senhora.
Em Thelema podemos encontrar o protagonismo “feminino” na figura da Babalon.
Embora ela não seja diretamente mencionada no Livro da Lei, ela é um personagem importantíssimo em “A Visão e a Voz”, o relato da experiência de Crowley ao explorar os Aethyrs Enochianos. Inclusive, vale comentar que Crowley considerava “A Visão e a Voz” o segundo livro mais importante dentre os Livros Sagrados de Thelema, perdendo em importância unicamente para o próprio Livro da Lei.
Em “A Visão e a Voz” Crowley menciona Babalon como a Rainha da Cidade das Pirâmides que reina com a taça sagrada onde guarda o sangue dos mestres que verteram seu coração por ela. Este sangue é o elixir do qual nasce a vida.
“Esse é aquele que desistiu de seu nome. Esse é aquele cujo sangue foi derramado na taça de BABALON. Esse é aquele que assenta, um pequeno monte de pé, na cidade das Pirâmides (…) Esta é a filha de BABALON a Bela, aquela que nasceu do Pai de Tudo. E tudo dela nasceu”.
O bispo gnóstico Tau Nahash é um autor que colabora com essa visão universalista de Babalon. Em seu artigo “A Emanação Babalon” ele escreve que: “BABALON é nossa Mãe, mas quem é ela? Ela é simplesmente tudo. O que você está vendo, o que está bebendo, o que está vestindo, a maneira como o cabelo cheira, a maneira como o barulho do lado de fora atinge a janela, o cachorro etc. Tudo isso é Babalon, toda a realidade material. Ela é a Mãe Divina, a portadora da Luz e das Trevas e a Ela somos subjugados por sua autoridade majestosa”.
No Tarot de Thoth podemos encontrar Babalon no Atu XI, Lust, sobre o qual Crowley escreve:
“Esta carta é atribuída ao signo de Leão no Zodíaco. É o Querubim do Fogo e é governado pelo Sol. É a mais poderosa das doze cartas Zodiacais e representa a mais crítica de todas as operações de magia e alquimia. (…) para que a Mulher da carta possa ser considerada como uma forma da Lua, muito iluminada pelo Sol, e intimamente unida a ele de forma a produzir, encarnado em forma humana, o representante ou representantes do Senhor do Aeon”.
Tal como Frejya, encontramos em Babalon a divindade que irá guiar a existência humana, do seu nascimento até a sua morte e dissolução. Isso fica muito explícito quando lemos na segunda estrofe do Liber XV, a Missa Gnóstica, a seguinte passagem:
“E eu em creio em uma Terra, a Mãe de todos nós, e em um Útero no qual todos os Homens são gerados, e onde eles descansarão, Mistério do Mistério, em Seu nome, BABALON.”
Babalon representa não apenas o início como também o fim e, por esse motivo, foi ela quem preparou o Profeta para proferir a palavra do Aeon: Thelema.
Mas afinal, por que nos preocupamos em mostrar esse conceito tão antigo de Frejya e comparar com esse conceito thelêmico a respeito de Babalon? Para responder a essa pergunta podemos mencionar Georgia van Raalte, que em seu artigo publicado no site Thelemicunion diz:
“Há sexismo no coração de Thelema porque Thelema e magia são sobre a diferença sexual. Isso tem o potencial de nos oferecer caminhos revolucionários, transformadores da compreensão de gênero e sexualidade, mas em contrapartida nós apenas a usamos para perpetuar baboseiras muito convenientes do velho Aeon.”
Enquanto Thelemitas do século XXI, devemos nos esforçar ao máximo para evitar essas baboseiras do Velho Aeon que trouxeram tanto pesar para a nossa civilização e que ainda hoje fazem com que a humanidade esqueça esse poder gerador e renegue-o simplesmente como fetichista, passivo e desprovido de poder. Tanto Frejya quanto Babalon possuem, sim, um componente sexual em si, mas esse componente tem a ver com a própria existência da humanidade tal como nós a conhecemos. Afinal, do que falamos quando dizemos em Magia Sexual? Não é a imposição da Vontade sobre o Mundo, sobre a Vida? Portanto devemos aprender essa lição, que não é nova, e reforçar esse entendimento entre nossos pares.
Antes de encerrarmos gostaríamos de reforçar um ponto importante: ao buscarmos semelhanças entre Freya e Babalon não pretendemos cair no erro de sermos reducionistas ao falar que uma é outra e vice e versa. O que queremos é tão somente apontar sobre um aspecto do divino, no caso da força primordial e necessária da Divindade Feminina Guerreira, Forte e Primordial para a existência desse plano.
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1 um tipo de prática de magia que envolvia divinações, comunicação com espíritos, processos de transformação, manipulação da mente, evocação de bênçãos e maldições, dentre outros feitos, realizados exclusivamente por mulheres conhecidas como völvas, spákonas, seidkonas (QUINTANA, 2012).
Referência Bibliográfica:
BRAGANÇA, Álvaro Alfredo; QUINTANA, Tiago. A Cristianização da Noruega e o For talecimento da Monarquia Norueguesa – Uma Perspectiva Histórico-Literária. Bra thair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. Rio de Janeiro, 2010.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 3. ed. São Paulo: Ática, 1995
CROWLEY, Aleister. A Visão e a Voz: Liber CDXVIII
CROWLEY, Aleister. The Book of Thoth.
KARLSDÓTTIR, Alice. Norse Goddess Magic. Toronto: Desteny Books, 2003.
GERRARD, Katie. Seidr: The Gate is Open. London: Avalonia, 2011
QUINTANA, Tiago. RUNAS, GALDR E SEIDR: Um Breve Estudo Sobre A Representação Literária das Práticas de Magia da Cultura Nórdica Medieval. NIELIM – Núcleo de Estudos em Literatura Medieval. Medievalis, Vol I (I), 2012.
RAALTE, Georgia van. O Estupro de Babalon (https://thelemicunion.com/other-materials/ o-estupro-de-babalon/)
TAU NAHASH. A Emanação Babal (https://eb.4gsanctuary.com/babalon#h.nh5mipqu15sx)
Um Artigo da revista 777 – Ano III, Nº14